O que virá com o jornalismo colaborativo?
Itacuruba, cidade distante 500 quilômetros de Recife, tem menos de 4 mil habitantes, e, em uma primeira olhada, pode não ter nada de diferente de outras da região. Mas Itacuruba guarda uma peculiaridade mórbida: é a cidade com o maior índice de suicídios do país, com 125 mortos para cada 100 mil pessoas, proporcionalmente. Uma tremenda pauta, e certamente grandes veículos já estão correndo atrás. Mas começam “furados”: quem trouxe a informação foi o wikirepórter Raimundo de Moraes, do Brasil Wiki. No site, qualquer pessoa pode enviar notícias que, depois de avaliadas por um jornalista, são publicadas.
O caso é mais um exemplo de uma tendência que, se não é nova, foi consagrada em 2006: o conteúdo participativo, ou colaborativo. Novas ferramentas permitem que mais pessoas possam produzir o que é lido, assistido ou ouvido na internet. A revista Time deu tanta relevância ao assunto que o escolheu a criação coletiva na web como o tema mais importante do ano. E, em jornalismo, o conteúdo colaborativo é observado de perto, tanto com empolgação como apreensão.
O termo “wiki” é uma abreviação da frase “What I know is…”, que pode ser traduzida como “O que eu sei é…”. Popularizou-se com a Wikipedia, enciclopédia online em que qualquer pessoa pode escrever ou editar verbetes. Criada em 2001, a Wikipedia possui, em português, mais de 200 mil verbetes. Em inglês, já passa do 1,5 milhão.
Os textos da Wikipedia entram no ar e só depois são avaliados. No Brasil Wiki, uma equipe de quatro jornalistas checa o material antes de ser publicado. Lançado há menos de um mês, o site já conta com 268 pessoas cadastradas como colaboradores. “Fizemos uma divulgação pequena, mas as colaborações começaram a surgir quase que de forma viral”, conta Eduardo Mattos, um dos idealizadores do Brasil Wiki.
Há mais tempo na web, o Overmundo, lançado em 2005, tem a proposta de ser um centro de convergência de culturas de todo o país. Além de textos e imagens, o site recebe colaborações em imagens e sons. “Nenhuma equipe de jornalistas, não importa seu tamanho ou competência, consegue cobrir ou filtrar a quantidade cada vez maior de coisas importantes que acontecem pelo país. Por outro lado, vitoriosos projetos online sugerem um outro caminho para lidar com esse enorme acúmulo de informação cultural, com cada vez maior descentralização”, informa o texto de apresentação do portal.
Valores revistos
Quem ler o texto sobre Itacuruba escrito por Moraes para o Brasil Wiki percebe digressões sobre a visão do suicídio na filosofia e sobre a poetisa Silvia Plath. Outros artigos trazem impressões bem pessoais sobre os temas tratados.
“Em jornalismo colaborativo, alguns valores do jornalismo tradicional são revistos. Imparcialidade, por exemplo, cai por terra. O importante é que fique claro que os cidadãos-repórteres são a melhor pessoa para contar aquela história”, explica a jornalista Ana Maria Brambilla, autora da tese de mestrado “Jornalismo Open Source: discussão e experimentação do OhMyNews International”, na UFRGS.
O site coreano OhMyNews, lançado em 2000, é tido como pioneiro em jornalismo colaborativo na internet, e serviu como modelo para o Brasil Wiki. Sua versão em inglês foi criada em 2004. “Já existe uma em japonês, e há o projeto para a versão espanhola”, informa Ana Maria. A jornalista acabou não respeitando muito o “distanciamento crítico” com o objeto de estudo: tornou-se correspondente do OhMyNews no Brasil. Atualmente, cerca de 35 mil pessoas já colaboraram com o veículo.
O designer paulista Fernando Mafra colabora com o Overmundo desde outubro. Começou enviando textos sobre a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e hoje publica críticas de filmes e crônicas sobre seu cotidiano e cultura contemporânea. Para ele, os textos do site são jornalísticos.
“Considero definitivamente. Não como veículo de notícias, mas já vi no Overmundo textos extremamente elaborados e reportagens que me impressionaram na qualidade e na complexidade, inclusive ultrapassando a qualidade de periódicos consagrados”, explica.
Toda essa geração de conteúdo jornalístico ainda causa resistência. Ana Maria tenta tranqüilizar os defensores do jornalismo “tradicional”. “Vai continuar tendo espaço para todo mundo. É fundamental que os repórteres-cidadãos tenham sua vida cotidiana, para contar suas histórias. O trabalho dos jornalistas entra na edição, onde são necessários valores e práticas adquiridos na carreira”, detalha.
Mattos, do Brasil Wiki, faz coro: “Nosso propósito não é competir com as mídias tradicionais. Temos outro foco. Queremos que as pessoas contem as suas histórias que não têm espaço nos jornais”.
No papel
A maior parte do que já foi feito no País em jornalismo colaborativo está na web, mas iniciativas já aparecem em veículos impressos. Alguns jornais abriram espaços, mas um dos que mergulharam de cabeça foi o Jornal de Londrina, do Paraná. Aproveitando uma reforma na proposta da publicação, em maio, foram criadas formas para o leitor comentar as notícias e enviar fotos, entre outras possibilidades.
“A seção ‘Eu Acho’ é do leitor. Ele comenta, por e-mail, qualquer notícia publicada no jornal. Os comentários são editados e publicados. Já tivemos debates que se estenderam por uma semana. E outras vezes que uma opinião ali expressada virou pauta”, conta Carla Nascimento, chefe de redação do Jornal de Londrina. “Certa vez, ficamos sabendo de um incêndio. Enquanto ainda preparávamos a equipe para sair, já chegavam fotos dos leitores, que também foram publicadas”, completa.
Após as mudanças, o Jornal de Londrina passou a ser distribuído, e não mais vendido. “Essa busca por interatividade é uma tendência internacional. Estamos tentando concorrer com a internet. E a nossa resposta tem sido muito boa. Houve aumento no número de leitores”, informa Carla.
O projeto mais representativo do jornalismo colaborativo em veículos impressos é a revista Sou + Eu, lançada pela Editora Abril há um mês. O conteúdo da revista, que é voltada para público feminino classe C, é integralmente gerado por seus leitores, que são pagos pela contribuição em até R$ 300. A Abril não economizou com a publicação: foram gastos R$ 13 milhões em publicidade, são prêmios semanais para os leitores de até R$ 1 mil e a tiragem inicial será de 850 mil exemplares, que será utilizada para dimensionar o mercado.
Ana Maria Bramilla atua também como colaboradora no gerenciamento de conteúdo colaborativo da Sou + Eu, e conta que, até agora, os editores não tiveram problemas com falta de colaboradores. “Tem chegado muita coisa, e muita coisa por carta”, diz. Com o pouco tempo de circulação, Ana Maria afirma que a exposição nas bancas tem aumentado.
Para um futuro próximo, a Sou + Eu pretende estreitar os leitores da revista com o seu site. “Muitas pessoas ligam para cá com dúvidas. É um público que não está tão acostumado a usar a internet. Mas a idéia é criar uma comunidade com a Sou + Eu, em que os colaboradores e leitores possam dialogar”, diz Ana Maria.
Futuro
“Tudo está muito badalado, mas ainda não vi nenhum case de sucesso de jornalismo colaborativo no País”. Quem pisa no freio é Bruno Rodrigues, da coluna Conteúdo n@ Rede do Comunique-se, focada em conteúdo online. De fato, o Brasil Wiki é mantido pelo investimento pessoal dos seus dois idealizadores. O Overmundo é patrocinado pelo programa Petrobras Cultural e pela Lei Federal de Incentivo à Cultura (Lei Rouanet).
“E ainda existe um certo desconforto entre o jornalismo mais tradicional e os cidadãos-jornalistas”, continua Rodrigues. “Enquanto ficar este incômodo, não sei se o jornalismo colaborativo crescerá”, completa. O texto da Time que justificou a escolha do conteúdo colaborativo como tema do ano também faz a ressalva que o experimento pode dar errado.
Por outro lado, Rodrigues vê surgir a figura do “super-jornalista”: especialistas em diversas áreas que aliam experiência e técnicas. “Isto já ocorre com os blogs de especialistas”, exemplifica.
Ana Maria Bramilla acha que o conteúdo colaborativo vai se espalhar por diversas áreas do jornalismo. “Só acho bem difícil que apareça no jornalismo investigativo, justamente por demandar práticas específicas, além do custo, estrutura e tempo de dedicação. Mas nada impede que tenhamos cientistas focando na área científica ou economistas escrevendo sobre economia”, explica.
E onde o jornalismo colaborativo vai parar? “Não vai parar”, responde Ana Maria. “Ele veio para mudar paradigmas e ficar”.
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