sexta-feira, 14 de julho de 2006

Complexo não-complexo

No texto que abre a (enfim!) edição nacional de Incal, o escritor chileno de origem russa Alejandro Jodorowski nos conta que tudo aquilo veio para ele como em um sonho, e Moebius colocou no papel. Mas após a leitura dos dois primeiros tomos, O Incal Negro e O Incal Luminoso, que a Devir Livraria reúne neste primeiro volume, fica a impressão que a coisa funcionou da maneira inversa: Moebius sonhava, e Jodorowski dava um jeito para organizar tudo aquilo.

O desenhista francês tem várias qualidades, como a leveza e agilidade dos seus traços e sua diagramação vertiginosa que quebra com o padrão franco-belga, mas talvez o que mais chame a atenção em Incal é sua inventividade no design: há coisas ali que não se parecem com nada, como os bergs, o/a Imperadoratriz e tudo com que o herói (?) John Difool cruza após entrar no Exterior Interno. De onde Moebius tira aquilo?

Jodorowski já era um cineasta, escritor e até mímico com décadas de experiência quando escreveu Incal. Multimedia como sempre foi, escolheu bem a linguagem que usaria para contar uma de suas principais obras. Incal só seria possível, da maneira que Jodorowski queria, se fosse em quadrinhos. E com Moebius desenhando.

Posto isto, e com a relevância que a obra ganhou ao longo dos anos, parece que
Incal é algo muito rebuscado. Nada. É uma aventura (no sentido mais rasteiro) ágil e divertida, gostosa de ler. Estrelada por um personagem improvável e trapalhão, o detetive fuleiro John Difool – surgido, como todos os personagens da série, das cartas de tarô – que acaba ganhando posse do item mais poderosos do universo e é catapultado para uma disputa de proporções galáctica. O típico anti-herói no lugar errado.

A história nasceu de uma frustração: Jodorowski e Moebius estavam envolvidos em uma malfada adaptação cinematográfica do romance Duna, dirigida por Dan O'Bannon. Se (este) filme sobre a obra de Frank Herbert foi para o limbo, serviu para unir a dupla pelo potencial da ficção científica. Jodorowski floreia, dizendo que não colocou o roteiro no papel, simplesmente contou para Moebius. Seja como tenha sido, deu o substrato para criação de um vasto mundo cyberpunk e seus personagens estranhos – expandidos nas séries derivadas, algumas delas ainda correntes.

A edição lançada pela Devir é baseada em uma republicação de 2003 da
Humanoïdes Associés, totalmente recolorida por Valérie Beltran. Saíram as cores chapadas, entrou o aerógrafo e mais diferenciações de luz. Não comprometeu, mas ficou bem diferente do original. A tradução de Marquito Maia é eficiente, com expressões bem brasileiras – “estão fungando no meu cangote” – mas mantendo a essência original. O álbum conta também com uma bem completa biografia de Jodorowski (a de Moebius virá no próximo volume). O único senão é que, pelo preço, poderia ser com capa dura, tipo os originais franceses.

Com muita genialidade e até naturalidade, as duas mentes criaram uma das mais celebradas HQs. Mark Millar define como “uma das histórias em quadrinhos mais perfeitas já criadas”.
Incal consegue reunir aventura, humor, ficção científica, misticismo e doideiras puras. Consegue ser complexo sem parecer complexo. E de uma maneira possível só nos quadrinhos.

Incal – Volume I
tem 28x21 cm, capa cartonada com orelhas e reserva de verniz, 96 páginas coloridas em papel couché brilhoso e custa R$ 42.

Publicado no
Sobrecarga em 13/07/06.

Sem nenhum motivo especial, eu gostei muito dessa.

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