sábado, 11 de fevereiro de 2006

A Caixa de Areia do Mutarelli


Choque de Realidade

Por mais fantasiosa que seja a História em Quadrinhos, ela é baseada na realidade que cerca seus autores. Por mais que trate de deuses nórdicos, Japão Feudal ou Zona Negativa, o dia-a-dia exerce influência. Mas encarar este cotidiano diretamente pode ser uma viagem mais transcendental e distante que todas as outras. E esta é a proposta de Lourenço Mutarelli e seu A Caixa de Areia ou Eu Era Dois em Meu Quintal, lançado pela editora Devir.

O álbum é uma tentativa desesperada de capturar a realidade. Não é uma autobiografia. Não trata de um grande momento específico. Só dias corriqueiros de Mutarelli, sua esposa
Lucimar, seu filho Francisco e do gatinho Nanquim. Uma invasão consentida de privacidade, que também se revela uma bela homenagem à família do autor, mas que exige muito do artista para enfrentar tal exposição.

Mutarelli recorre a vários artifícios para aprisionar e entender esta realidade: amigos, Schopenhauer, Platão, Lewis Carroll, Pieter Brüegel, fotografias, metalinguagem, memória. E, principalmente, a uma narrativa paralela, com dois narigudos dentro de um carro quebrado no meio do deserto. Os capítulos se alternam entre a história da família Mutarelli e as discussões de
Carlton e Kleiton, para serem chocadas de forma magistral.

O autor dá uma aula de como mostrar o silêncio em HQ em um dos capítulos com a dupla nariguda. Enche de detalhes os objetos comuns da sua casa, facilitando a identificação. Além de muita ironia, dá alguns toques de surrealismo, com bonequinhos falando. É a sua forma de interpretar a realidade.


Da ponta de um lápis, pode sair qualquer coisa. Este é um dos maiores baratos dos quadrinhos. Mas narrar o cotidiano também pode ser a maior aventura.


A Caixa de Areia
tem formato 21x13,8 cm, lombada quadrada, 144 páginas em preto e branco e preço sugerido de R$ 25.

Publicado originalmente no
Sobrecarga em 10/02/06.

Fiquei muito feliz com este texto. Simples e instigante. Bom. Fazia um tempo que isso não acontecia.

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